quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Simplesmente Gente

tGente é ruim, mas é boa. Todas as gentes do mundo têm algo de Deus. Uma vez, quando eu cruzava uma rua de Belo Horizonte com uma amiga, ela disse uma coisa que me martela na cabeça até hoje. Havia um bêbado caído no meio-fio, semimorto, imundo. Visões assim são tão normais na cidade grande que a gente olha sem ver. “Veja, Bráulia, a imagem e semelhança de Deus”, apontou. Era verdade. Gente legal e gente desconjuntada, todos somos a imagem do Criador. Nossa jornada com ele não começa quando nos convertemos, como alguns pensam, como se o Senhor fosse cego para nós antes de pertencermos ao rebanho evangélico, ou como
se o Pai fosse algum tipo de religioso que discrimina pessoas. A cantora Baby do Brasil diz que Jesus não é evangélico, e eu concordo inteiramente. Ele é Deus. Sua jornada conosco começa antes de nós nascermos, já que seus olhos nos viram quando éramos embriões, conforme diz a Bíblia – e prossegue nos vendo enquanto ainda respirarmos. Sua jornada conosco leva em conta nossas experiências, ainda que dolorosas: as tribulações que passamos, os dons, e até as dúvidas e falta de fé que carregamos. Não é tudo anulado aos pés da cruz, mas tudo é reorganizado de forma a fazer sentido, a gerar vida em outros, a produzir cura para nós e para quem chegar perto. Lembro-me daquele homem “pobre mas sábio” que, com sua sabedoria, salvou sozinho uma cidade. E nós repetimos o bordão que diz que “uma andorinha não faz verão”, achando que está certo. E o que dizer de tantos outros homens mencionados nas genealogias, pessoas de obscuras trajetórias mas de cujo nome que conhecemos hoje e até colocamos em nossos filhos. O que fizeram e deixaram de fazer ficou para a posteridade. Abraão tinha fé; mas também era covarde, já que mentiu sobre sua verdadeira relação com sua mulher Sara. José perdoou a seus irmãos, mas Davi deixou de perdoar seu filho Absalão. “Gente espelho da vida, doce mistério...” Jesus, ressuscitado, caminhava na estrada com dois discípulos. Abatidos, eles narravam para sua percepção do que havia acontecido alguns dias antes. O “profeta” havia morrido. Fôra assassinado pelos religiosos. Deviam estar pensando que, afinal de contas, aquele rabi não era quem eles esperavam que fosse. Jesus se impacienta um pouco com eles: “Como é que vocês custam a entender e demoram a crer em tudo o que os profetas falaram?”, questiona. O Deus que eles esperavam não era gente – então, não poderia ter morrido. Mas Jesus, o Deus Criador em quem habitava toda a plenitude da divindade, ainda era gente. E os discípulos de Emaús não o reconhecem ali no ato religioso, enquanto ele lhes ensinava as escrituras. Não o reconhecem pela pregação, apesar de depois perceberem que tinha sido poderosa. Vieram a reconhecê-lo quando se sentaram juntos para comer. No partir do pão, quando Cristo deu graças e lhes ofereceu uma porção – ato cotidiano e rotineiro, ou seja, atitude de gente, não de um religioso ou de um pastor –, só aí seus olhos se abriram para reconhecer o Salvador. Às vezes, me pergunto se a Igreja sabe quem é. Nós nos cremos representantes de Cristo na terra, mas pensamos ser melhores que ele. Não precisamos ser gente – basta-nos o ofício religioso, o distanciamento cultural do que chamamos de “mundo”, e que confundimos com santificação. Basta-nos falar um jargão próprio e criar redomas santas onde nos escondemos. E aí, pensamos estar ganhando o mundo e nos aproximando do Senhor. Nesse processo, esquecemos quem somos, e de que é tudo muito mais simples.
“Gente espelho de estrelas, reflexo de esplendor
Não, meu nêgo, não traia nunca esta força não
Esta força que mora em seu coração”

Bráulia Inês Ribeiro, presidente nacional da JOCUM(Jovens Com Uma Missão) e autora do livro Chamado Radical (Editora Atos).

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